Lília Emídio Carvalho, advogada associada da Travassos Albuquerque & Associados, escreve sobre o novo enquadramento jurídico dos atos notariais realizados à distância e questiona se estamos perante um desejo tornado realidade ou um pesadelo à vista?
Para a advogada, apesar de os atos jurídicos terem de se adaptar às necessidades dos intervenientes e à realidade digital, este diploma legal é um ponto de partida positivo, mas necessita de muitos ajustes para garantir a segurança jurídica de todos os cidadãos.
Outorgar à distância
Um desejo tornado realidade ou um pesadelo à vista?
Hoje vamos falar sobre atos notariais à distância, concretizados através da assinatura digital certificada, de meios telemáticos ou de videoconferência. Porém, será este um desejo tornado realidade ou um pesadelo à vista?
Antes da pandemia, esta possibilidade outorgar à distância já era amplamente defendida por advogados, notários, cidadãos e empresas. Mas desde a aprovação do projeto de Decreto-Lei pelo Conselho de Ministros até à data prevista para a sua entrada em vigor passaram cerca de dois anos. E, ainda assim, o Decreto-Lei n.º 126/2021, que finalmente entrará em vigor a partir de 4 de abril de 2022, estabelece um regime jurídico temporário de dois anos que não se aplica a todos os atos notariais e estabelece limitações consoante os atos e os diferentes profissionais habilitados.
Tratando-se de um ato a realizar por conservadores de registo e por oficiais de registo apenas se admitem o procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédios em atendimento presencial único, processos de separação ou divórcio por mútuo consentimento e procedimentos de habilitação de herdeiros com ou sem registos.
Quanto aos notários, agentes consulares portugueses, advogados ou solicitadores, o referido diploma legal abrange todos os atos que sejam da sua competência, existindo também, exceções como os testamentos e atos com estes relacionados e alguns atos relativos ao registo predial.
E quanto à aplicação territorial? É limitada a atos a praticar em território nacional. Já no caso de atos a praticar por agentes consulares portugueses, este diploma aplica-se à prática de atos notariais relativos a portugueses que se encontrem no estrangeiro ou que devam produzir os seus efeitos em Portugal, nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 51/2021, de 15 de junho, que aprova o Regulamento Consular.
A realização de atos notariais à distância deve ser realizada através de uma plataforma informática disponibilizada pelo Ministério da Justiça que dará suporte à realização dos atos, através da qual é facultado o acesso às sessões de videoconferência. Como não poderia deixar de ser, e em cumprimento de um dos princípios basilares previstos na Constituição da República Portuguesa, os intervenientes podem fazer-se acompanhar nos atos por advogado ou solicitador, presencialmente, ou à distância. Já no que respeita à validade dos atos autênticos, termos de autenticação de documento particulares e reconhecimentos realizados ao abrigo deste regime, estes terão o mesmo valor probatório dos atos realizados presencialmente, desde que se observem os requisitos nele previstos.
Em síntese, parece-nos que este regime não chega a ser um desejo tornado realidade, na medida em que deverá sofrer várias alterações e ser alvo de “aperfeiçoamento” ao longo do tempo. Aliás, algumas entidades e ordens profissionais já se pronunciaram sobre a sua aplicabilidade prática como a Ordem dos Notários que no início do processo deu parecer negativo por entender que não se conseguirá garantir que as partes envolvidas nos atos não estão a ser coagidas, dado que não será possível verificar e ter a certeza que de que não existirão terceiros, fora do alcance das câmaras, defendendo que, inicialmente, este projeto deve apenas abranger atos de valor reduzido para que os notários e conservadores adaptem a capacidade de verificação da vontade dos intervenientes à realidade nova realidade do formato digital.
Após a promulgação do diploma legal, a Ordem dos Notários mantém as suas reservas, reiterando a sua preocupação com a proteção dos mais vulneráveis, informando, contudo, que os Notários portugueses irão colaborar com o Ministério da Justiça e demais agentes para garantir que tal alteração legislativa atinge os seus objetivos sem comprometer os direitos fundamentais dos mais vulneráveis, salvaguardando a segurança jurídica.
Já a Ordem dos Advogados deu parecer positivo, entendendo que esta nova realidade permitirá responder de forma inovadora às necessidades dos cidadãos e empresas. Por sua vez, a Comissão Nacional de Proteção de Dados fez diversas recomendações e sublinhou a necessidade de se estabelecer um regime de salvaguardas para o sistema de identificação biométrico que se venha a prever, alertando ainda para a necessidade de o diploma legal referir expressamente quais os dados do cartão de cidadão que serão objeto de recolha e tratamento, de acordo com as finalidades do tratamento e a necessidade da sua utilização.
Pelo exposto, sem embargo de ser uma realidade efetiva que poderá facilitará em muito o comércio jurídico e a vida dos cidadãos, empresas e profissionais, entendemos que, apesar de poderem ser disponibilizadas a todos os intervenientes as ferramentas e meios técnicos que garantam fidelidade e segurança à prossecução destes atos, será sempre difícil aferir não só da identidade e da qualidade de todos os intervenientes, mas também da autenticidade do ato e da capacidade e vontade dos outorgantes. Por outro lado, não podemos deixar de referir que os atos jurídicos também têm de se adaptar às necessidades dos intervenientes e à sua realidade, sendo este diploma legal um ponto de partida positivo que, certamente, será ajustado com a prática, de modo a tornar-se uma ferramenta útil, segura e eficaz.